Underneath: Short Story #2

     O início de abril foi marcado pelas suas chuvas terríveis. Após duas semanas de mau tempo, veio um sol forte, quente e duradouro.
     Noah já tinha os seus sete anos e começava a mostrar uma estrutura alta e magra. O corpo cheio de sardas, apesar de magro, era forte e não se rendia às feridas que arranjava por trepar na árvore grande do jardim ou por correr demasiado rápido e tropeçar. Ele sabia que a mãe podia usar os seus poderes nele pare lhe aliviar a dor e era sempre uma desculpa para ter a irmã, Violet, por perto.
     Sem precisar de lhe dizerem directamente, Noah sabia que não fazia parte da família como Ian ou as irmãs gémeas faziam. Mas a quem chamava de mãe, era a sua mãe, e quem chamava de pai, era o seu pai. Depois havia o bisavô Mercúrio que preferia ser só chamado pelo nome, o Urano que implorava por ser chamado de titio ou amado tio, e por fim, a Jade que parecia tanto uma amiga quanto algo mais. Noah também sabia que tinha irmãos, os seus irmãos, e mesmo não sendo nada parecidos, o pequeno sentia uma ligação forte entre eles: uma ligação mágica. Quando lhe perguntavam sobre essa ligação, ele simplesmente dizia que era forte, como um fio, feito de terra, água, ar e fogo.
     O que ele não sabia, porém, era como Troy encaixava entre ele e os irmãos porque ele era claramente mais velho e vinha de uma família normal, com pais normais. Noah sentia, apesar de não saber bem como, que Troy era igual a ele e aos seus irmãos, unidos pela mesma ligação de elementos.
     Toda este assunto mágico era algo que o fascinava mas era rapidamente ultrapassado por um outro pensamento mais cativante que surgisse na altura. Mas sempre que lhe falavam sobre isto e lhe faziam perguntas, Noah mostrava-se interessado, respondendo às mesmas perguntas, e também fazia as suas próprias no limite da sua compreensão. Para um menino de sete anos, falar de magia e ver magia eram algo que se contrastavam e ele preferia muito mais ver, sem nunca perder a crença nela. E apesar de os pais às vezes parecerem estar a controlá-lo, Noah nunca mostrou sinais estranhos. Assim pensava ele. 
     Mesmo os pais sendo extremamente abertos sobre este assunto, sempre lhe disseram, e ao Ian, que não era para contar nada aos seus amigos ou conversar sobre isto com os professores. Noah percebia que os pais eram uma espécie de super-heróis que passa na televisão e que têm de manter a sua identidade secreta para tudo correr bem. Um dia queria ser tão fantástico quanto eles.
     E num dia de abril, Noah tornou-se assim tão fantástico.


◄◊►


- Noah... - ouviu. - Acorda.
     A voz da mãe ecoou pelo quarto e o seu consciente acordou, ainda sem abrir os olhinhos negros. Conseguia perceber os raios da manhã por detrás das suas pálpebras. Rapidamente tornou a dormitar até sentir as mãos da mãe no seu corpo. 
- Vamos lá, dorminhoco. Eu sei que estás acordado. 
     Noah sorriu, ainda com os olhos bem fechados, pegou nos lençóis e puxou-os para cima. Luna sorriu, passou as suas mãos pela barriga dele e começou a fazer-lhe cócegas. O menino cedeu e abriu os olhos, a rir. Luna continuou com as cócegas até ele lhe dizer para parar umas quatro vezes. Por fim, ela sentou-se na cama. 
-  Como é que o meu menino se sente hoje? Melhor?
     Noah assentiu. As portadas das janelas estavam fechadas e a única luz vinha do corredor iluminado por um sol forte e quente que fazia da mãe uma silhueta negra com olhos de um azul claro brilhante.
     Luna referia-se a uma pequena constipação que ele tinha apanhado e que lhe tinha provocado uma tosse terrível e alguma febre. Aquele era o terceiro dia em casa e ao ver a ausência de tosse e nenhum lenço amarrotado na mesa de cabeceira, Luna estava pronta para enviá-lo para a escola o resto da semana. 
- Ainda bem - ela sorriu e inclinou-se para lhe beijar a testa. 
     Luna sentiu uma pequena onda de calor vindo dele e ficou subitamente alarmada. Os dois ficaram confusos. Noah abriu um pouco os olhos, aflito. 
- O que se passa, mãe? Tenho febre outra vez?
     Ela abanou a cabeça e abraçou-o, forçando um sorriso para o acalmar. 
- Não. Não é nada... - afastou-se e deu-lhe um beijo na bochecha salpicada de sardas. - Anda, vamos tomar o pequeno-almoço. 
     Luna saiu da cama e Noah fez o mesmo, colocando as pantufas em seguida. Ela estendeu-lhe a mão e ele pegou-a, ainda sonolento e tranquilo. Os dois desceram as escadas e foram para a cozinha. 
- Olha quem vem lá! - ouviu Urano dizer. - Sentes-te melhor, Noah? 
     Noah, ao ver Urano na cozinha, largou muito rapidamente a mão da mãe. 
- Sim.
     Sol e Luna trocaram um olhar e contiveram-se para não se rirem. O rosto de Noah estava ligeiramente corado. 
- Então pequenote, o que vai ser? - perguntou o pai. Noah sentou-se num dos bancos altos junto ao balcão. - Temos panquecas, cereais e talvez ovos. 
- Panquecas! - disse sem hesitar. 
     Sol sorriu, contente pelos seus filhos cederem sempre às suas panquecas. 
- Tens a certeza que ele se pode sentar aqui, Moony? 
- Claro que posso - replicou Noah.
- Se ele cair e não o apanhares, ficas igual ao Juju - respondeu Luna.
     Urano suspirou, virou-se no seu banco e pegou no copo com sumo de maça e algo mais.
- Nada mais saudável do que ameaças às nove e meia da manhã! - e levantou o copo numa espécie de brinde.
- A Cora? - perguntou Noah a olhar em volta. 
- Deve estar lá fora. Abri a porta à pouco - respondeu o pai. - Depois de comeres vamos procurá-la se ela não aparecer, está bem? 
     Noah assentiu com a cabeça, a fitar o prato de panquecas que o pai estava a preparar. 
     Cora era a gatinha de pêlo curto que os Brown tinham arranjado à seis meses atrás para alegrarem a casa juntamente com Lymph, outra gatinha, e Sagitário, um gato já de três anos. Muito antes de Ian nascer, já três gatos tinham morrido: Leslie, Cosmo e Persifal. Um pouco depois do nascimento do bebé, foi a vez de Nyx, Apollo e Malmequer. Não aconteceu tudo ao mesmo tempo, mas foram acontecimentos sequenciais que deixaram todos imensamente tristes. E durante alguns anos a casa ficou vazia de gatos mas cheia de crianças. Agora, Luna e Sol sentiam a falta de felinos pelos corredores, de limpar infinitas caixas de areia e comprar quatro pacotes de ração. Então começaram a criar outra pequena família. Cora e Lymph foram nomeadas pelas gémeas e Sagitário pelo Noah por ser a primeira constelação que ele aprendeu a ver no céu. 
- Aqui tens - o pai entregou-lhe o prato -, panquecas à le Soleil
     Noah atacou o prato sem hesitações. Se lhe dissessem que ele só comeria aquilo para a o resto da vida Noah ficaria inteiramente satisfeito. As panquecas do pai eram tão boas, tão fofas e tão saborosas. Colocavam completamente de parte as da mãe apesar de ela fazer crepes melhor que ele. 
     Luna colocou café na sua caneca e entrou na conversa entre Urano e Sol. Os dois falavam de uma nova loja que faz fatos "belíssimos" que são "verdadeiras obras de arte", como dizia Urano. 
- Tens aí um cartão? - Sol levantou os cotovelos do balcão.
- Claro - e tirou um cartão pequeno, rectangular e branco, escrito a preto, do seu bolso das calças. - O cartão não mostra logo o ar sofisticado? 
- De facto - Sol concordou. - Temos de lá ir. Faz-me falta um fato preto. 
- Sou bem-vinda nessa visita à loja? 
- Moony... Isto são coisas que têm de ser feitas por nós, homens, que conhecemos bem o que faz um bom fato. 
- Detesto dizer isto, amor... Mas o Urano tem razão. 
     Luna abriu a boca incrédula, depois levantou a sobrancelha e sorriu, mostrando desdém àquela ideia. 
- Tudo bem. Vou ignorar o sexismo presente. Mas, em retorno, exijo um desfile - disse e depois bebeu um gole do seu café. 
     Os olhos claros de Urano mostraram um brilho sublime, avivados pelo desafio.
- Se é que o tu desejas, representação da Lua, assim o terás! - replicou logo Urano, com uma viva excitação no corpo. - Chamamos o Juju, convencemos o Mercúrio a meio, o que dizes Sol? - ele nem deu hipótese de resposta à Estrela. - Fantástico - disse ele com o seu sotaque britânico a brotar no "fantástico". - Estamos combinados, Moony? - e esticou-lhe a mão. - Já estou a imaginar tudo... Vai ser o evento.
     Luna apertou a mão magra e longa de Urano, selando o acordo.
- Esperem lá! Eu não concordei com isto.
- Não sejas assim, Majestade! O acordo está feito - Urano tinha as mãos em fúria, fazendo gestos exuberantes. O pobre Noah fitava o Planeta com confusão nos olhos. - Vais desapontar a tua linda, bela, charmosa, fantástica, mulher?
- Cuidado com essa língua - Sol apontou-lhe o dedo e depois fitou a sua Luna.
     A sua esposa era tocada graciosamente pelos anos, com rugas somente nos olhos brilhantes azuis e nas bochechas de tanto sorrir. O cabelo, sempre negro, brilhava suavemente na luz da manhã, ondulando como a noite no céu estrelado, mostrando sinais de brancura na raiz que ela logo iria voltar a pintar. As suas mãos não tinham perdido a doçura e o toque ficava mais gentil com o passar do tempo. O seu corpo, mais curvo, continuava a ser o refúgio de Sol onde todas as noites pousava.
     Ele também não se tinha deixado ficar pela aparência com que Luna o conheceu. À medida que os anos iam passando, à medida que Luna ganhava os seus traços do tempo, ele também ganhou. Tinha nos olhos algumas rugas, se deixasse crescer a barba já veria sinais de brancura (por isso é que não a deixava crescer mesmo que Luna pedisse) e o corpo tinha perdido a sua rigidez, apesar de continuar a praticar exercício físico sempre que pudesse. Os miúdos deixavam-no ocupado nesse aspecto. Os seus filhos eram, sem sombra de dúvidas, parte da razão por envelhecer perante os anos: Sol queria dar-lhes algo normal no meio da fantasia que se misturava naquela família. Queria também que Luna não se sentisse sozinha nesta lenta transição. Se alguma vez Sol pensou em envelhecer, foi então ao lado da sua Tal, rodeado pelas crianças que os dois criaram e ainda criam com o maior amor. E gatos. Sempre rodeado de gatos.
     Sol suspirou, sem conseguir abanar a fala de Urano.
- Que remédio tenho eu?
- Nenhum! - respondeu Urano, levantando o copo para um brinde.
     Luna levantou a sua caneca de café e os dois brindaram ao novo evento. O que ela gostava de saber era como iriam convencer Mercúrio a vestir-se para algo sem ser ir trabalhar com os Evans, especialmente sendo um fato com várias peças e, ainda por cima, para um desfile! Isso por si só era um evento especial, que merecia toda a atenção.
- Bem, Moony... Se eu precisar de ir a extremos irei.
- Mãe - chamou Noah. - Já acabei.
- Queres ir procurar a Cora? - perguntou o pai.
     Ele assentiu enquanto acabava de beber o resto do leite.
- Primeiro vais à casa de banho lavar os dentes e o rosto para tomar o medicamento - disse a mãe.
- Sim - respondeu Noah que assim que pousou o copo no balcão, saiu do banco, num salto, rumo à casa de banho.
- As crianças acordam com uma energia... Onde está o outro? Ah, pois é... escola - Urano revirou os olhos.
- Não vamos começar, Urano - disse Sol, arrumando os pratos e os copos vazios no lavatório.
- Pois, enfim, está bem.
     Ele olhou para o relógio: marcava as nove e cinquenta.
- Bem, meninos, tenho de ir exercer o humilde dever de um homem. Até já - com um gesto de dois dedos disse adeus, desaparecendo na sua luz roxa.
     Luna virou-se, observando o seu marido a exercer o seu humilde dever: cuidar da casa.
- Vais ficar a ver enquanto podias ajudar? - perguntou Sol, que sorria, a lavar os pratos, sem a fitar.
- Vou sim - respondeu ela.
     Sol iria dizer-lhe algo provocante se não fosse os chamamentos de Noah pela casa.
- Mãe! Mããeee!
- O que foi, Noah? - ela virou-se para vê-lo.
     Noah estava à porta da cozinha/sala de jantar com uma bola de voleibol na mão, completamente vestido e calçado. Luna não queria acreditar.
- Onde pensas que vais? Estás doente, menino - disse ela.
- O Ian só vem à tarde e eu sei que o Carlos está em casa por isso vou brincar com ele.
- E já não se pede permissão? - perguntou o pai enquanto secava as mãos num pano.
- Posso ir? Por favor?
     Luna fitou o marido. Este tinha um olhar impassível, indecifrável, e ela sabia que Sol deixava-o ir. Deixou-o, portanto, falar.
- Podes ir. Mas quero-te em casa antes do almoço, combinados? - e apontou-lhe o dedo, com um olhar já não tão sério.
     Noah assentiu, com um meio sorriso no rosto, e rapidamente saiu de casa, indo de encontro à casa do amigo ao lado da sua.
     Luna encarou o marido à espera da explicação para aquele olhar tão autoritário.
- O que foi? - disse ele, surpreendido. - É preciso mostrar aos miúdos um olhar forte.
- Sim, sim... - Luna revirou os olhos, a sorrir.
     Sol retornou ao lava-loiça (só usava a máquina de lavar se houvessem muitos pratos/copos usados). Luna pousou a caneca ao lado dele e beijou-lhe a bochecha.
- Eu depois seco e arrumo tudo. Vou só tomar um banho e desço rapidinho.
- Está bem.
     Ao entrar no duche, Luna lembrou-se que Noah não tomou o xarope e praguejou baixinho.


◄◊►




     Assim que viu as horas no seu relógio digital, Noah disse adeus ao amigo moreno, de cabelo ondulado preto de olhos igualmente negros, e correu para casa, esfomeado. Assim que entrou pelo portão branco, viu Cora a vaguear, miando baixinho pela relva baixa. 
- Cora - disse ele, pegando na pequena,  levando-a cuidadosamente para dentro e deixando a bola para trás. - Tens fome, tens? Eu estou morto de fome... 
     Ele entrou pela porta da frente, com água na boca devido ao cheiro que bailava no ar e após a luta da Cora, Noah largou-a. A gata foi direita à comida fazendo o único caminho que sabia de cor. Noah não viu os pais na cozinha e chamou por eles. Reparou no rosto do pai na janelinha da porta das traseiras e antes que lhe dissessem, foi para o alpendre grande, decorado com o universo e cascatas de flores. Na mesa, estava o seu pequeno irmão, mais novo por pouco mais de um ano. Ele sorriu ao vê-lo e Ian fez o mesmo. 
- Olá, Ian! 
- Está todo suado, Noah! - exclamou a mãe. - Vai lavar as mãos, anda lá - ela colocou as mãos nas costas dele, já a indicar-lhe o caminho para a cozinha. 
- Já não estás doente? Nem sabes o que aconteceu hoje! - disse o irmão. 
      Noah assentiu, cedendo à força da mãe. Lavou as mãos cuidadosamente e depois foi sentar-se ao pé do irmão. A mãe montou a mesa, o pai serviu o almoço. Os irmãos ficaram embebidos na conversa que ia desde a escola até aos desenhos animados. Luna e Sol também se perderam um pouco na conversa deles, deixando os miúdos no seu mundo. No entanto, os dois fizeram questão de mostrar interesse na conversa deles. Nenhum dos dois ligou-lhes por muito tempo, apesar de mostrarem entusiasmo quando os pais lhes fizeram questões. 
     O almoço passou rápido. Os três gatos apareceram entretanto e fizeram uma sesta longa, tirando Cora que, em vão, tentava animar os gatos sonolentos. Mercúrio e Urano passaram pelos Brown à procura de alguma sobra de sobremesa. Luna pouco depois foi à redação da revista entregar textos e entrevistas, bem como ver se estava tudo em ordem. Sol levou os miúdos à vila, deixando-os um pouco soltos, nas ruas largas, enquanto comprava produtos orgânicos e saudáveis para o resto da semana. Encontraram a mãe do Carlos, que, infelizmente para os miúdos, não estava com ela. Ela disse-lhes que o Carlos tinha equitação, onde a irmã deles, Melody, e o namorado, Ryan, iam. Noah e Ian sabiam bem onde ficava, já tinham ido visitar algumas vezes. Os dois gostavam muito de ver a irmã a montar, mas nenhum tinha coragem de se por em cima de um cavalo. Noah achava-os lindos - especialmente os frísio, que têm um pêlo negro e lustroso - mas não conseguia ver-se em cima das costas de um sem imaginar uma dolorosa queda. 
     Depois das compras, eles pararam no bar dos pais do Troy onde compraram um gelado e apreciaram a vista da praia. Sol deixou as crianças andarem na praia um pouco antes de voltarem para casa. Quando voltaram, Luna estava em casa, na sala, com a televisão a fazer de companhia enquanto trabalhava no computador. Os miúdos foram contar à mãe o que andaram a fazer com o pai e depois seguiram para o jardim, pegando de volta no plano para o seu forte. 
- Podemos fazê-lo ali no canto e colocar uma bandeira vermelha com uma cruz! - disse Ian, já animado, pensando em histórias de reis e piratas.
- Mas temos de manter segredo dos nossos planos... É a nossa base secreta - sussurrou Noah. 
     Ian concordou, assentindo levemente, com o olhar cerrado, entrando no clima de mistério que Noah propunha. 
- Tem de ser um forte com torres para vigiarmos os que tentarem atacar-nos. 
- Sim, sim... 
- Com uma bandeira com um leão, ou... ou... um dragão! 
- Sim! 
- Shhh - fez Noah, colocando o dedo nos lábios. Ele olhou para os lados, como se procurasse algum espião. - Eles vão ouvir-nos. 
- Quem? 
- Os... piratas! - gritou ele, assustando o irmão e colocando-o de novo animado. 
     Os dois começaram a correr pelo jardim, Noah atrás de Ian, numa perseguição. 
- Não me apanhas! - gritou o pequeno Brown.
     Noah sorriu, com os braços esticados tentando agarrar a t-shirt do irmão. Os dedos dele estavam quase lá quando Ian conseguiu esquivar-se para o lado fazendo Noah cair ao virar-se. Ao esticar a mão salpicada de sardas, ao tentar puxar a camisola do Ian, Noah soltou uma bola de fogo que voou direitinha para a parede, num local ligeiramente mais acima do telhado do alpendre. A bola extinguiu-se assim que tocou na parede, formando um círculo chamuscado na parede clara da casa. Assim que se levantou e viu o resultado daquilo, Noah só esperava que a mãe não lhe tirasse as sobremesas. 
- Isso foi incrível! - gritou o irmão que correu para o pé dele. - Faz outra vez! 
     Os pais apareceram quase no instante seguinte. Viram a expressão petrificada de Noah e souberam que algo tinha acontecido. Os dois aproximaram-se dos miúdos. Ian colocou-se ligeiramente atrás do irmão enquanto que este já tinha preparado os pedidos de desculpa na mente apesar de não ter noção alguma do que acabara de acontecer. Ele não compreendia o sucedido. 
- Foi sem querer, eu não sei o que aconteceu. Juro! 
     Luna e Sol olharam para a parede da casa que tinha sofrido pelo poder de Noah. Entreolharam-se, calmos demais para o gosto de Noah, apesar da expressão chocada da mãe. 
- Vou ligar ao Troy - disse o pai que foi para dentro de casa. 
- Porque vão ligar ao Troy? - perguntou Ian. 
     Luna tirou os olhos da madeira queimada e colocou-os nos seus filhos. Baixou-se para ficar ao nível deles e Ian voltou a colocar-se atrás do irmão, sem saber o que esperar. Noah engoliu em seco.
- Está tudo bem, meninos - disse ela. - Não vou ralhar com nenhum dos dois. 
     Noah e Ian respiraram fundo. Os dois iam fazer perguntas à mãe quando ouviram passadas agitadas em direção ao jardim. Troy e a irmã apareceram no momento seguinte. Os dois pareciam ter-se vestido à pressa por a meio do caminho estarem a ajeitar a t-shirt e o vestido. Ambos tinham os rostos ligeiramente corados.
- O que aconteceu? - perguntou Troy, alarmado.
- Estão bem meninos? - perguntou Violet a fitar os irmãos. 
     Eles assentiram. Noah ficou mais petrificado. O que quer que ele tenha feito, foi mau o suficiente para os pais terem chamado a irmã e o Troy!
     Troy atravessou o alpendre, desceu os degraus e foi para o local onde os miúdos e Luna estavam. Fitou a parede queimada com um olhar chocado e um leve sorriso no rosto, como se olhasse para uma maravilha. Sentia que tinha ganho uma aposta com ele próprio. Se alguém tinha a certeza de que as crianças iriam ter poderes era ele. 
- Eu sabia, eu sabia! - murmurou, colocando a mão no ombro de Noah. 
- O Noah tem poderes? - perguntou Ian, que começou a circular o grupo, muito animado.
- O quê? - replicou Noah, confuso. 
     Sol aproximou-se.
- Ian, acalma-te - pediu o pai, com uma voz calma e meio baixa. 
     O menino foi ter com ele, ficando quase colado à sua perna, em silêncio. Troy e Violet trocaram um olhar, ela pedindo que ele permanece-se sério perante o assunto. Troy rapidamente eliminou o sorriso. 
- Que tal irmos para dentro? - sugeriu Troy. 
- Sim, sim... - respondeu Luna. 
- Vamos, Noah - disse-lhe Troy, massajando-lhe o ombro. 
     Foram todos para a sala, mas Violet levou Ian para cima em seguida, apesar dos seus protestos.
     Noah permaneceu calado o tempo quase todo, balbuciando algumas palavras, sem nunca conseguir terminar a frase, num murmúrio. Ele estava perplexo e ainda não sabia se o que aconteceu foi bom ou mau. Luna começou a falar, mas depois ao ver que não estava a obter os resultados pretendidos, pediu a Troy, com o olhar, que este fosse falar com o seu filho. Troy sentou-se na mesa de centro de vidro e colocou os cotovelos nos joelhos. Noah fitava os pés, a tentar processar tudo o que tinha acontecido.
- Noah, olha para mim - pediu. 
     O pequeno levantou os olhos negros, fitando o rosto moreno de Troy. 
- O que aconteceu à bocado foi algo que iria eventualmente acontecer. Eu sei que sabes mais ou menos o que os teus pais são, que eles têm poderes como os super-heróis e que as tuas irmãs também têm - Noah assentiu. - Eu também tenho. - Os olhos de Noah abriram-se. - Eu sei - Troy sorriu -, é bem porreiro. Sabes a ligação de elementos que tu sentes com os teus irmãos? 
- Sim. 
- Essa ligação é mais real do que pensas. Eu, tu, o Qaya e a Sil fizemos parte de uma galáxia, tal como o teu pai e a tua mãe, e as gémeas, fazem parte de uma. Eu era a estrela, tu, a Silver e o Qaya Planetas. Sabes, a marca estranha que tens aqui - Troy tocou na zona por baixo da axila -, significa isso mesmo. Representa quem tu foste, quem ainda és. Nós os quatro representávamos e ainda representamos os quatro elementos. Eu sou o Ar - Troy apontou para si mesmo e demonstrou rapidamente um furacão ligeiramente maior que a sua palma. Os olhos negros de Noah brilharam. 
- Isso é fantástico - suspirou ele, encantado. 
- Pois é. Tu és o Fogo. Foi por isso que lançaste uma bola de fogo contra a casa. 
- Não foi de propósito! Juro! - disse ele. - Não quis queimar a parede. Foi sem querer!
- Não faz mal, querido - disse Luna. - Não faz mal - ela chegou-se à frente e sentou-se ao lado dele. 
     Luna abraçou-o. 
- Noah, os teus poderes são algo fantástico - disse-lhe o pai, que se agachou à frente dele depois de Troy dar espaço. - Este foi o teu primeiro ataque. Vão surgir mais, mas há medida que vais treinando, vais conseguir controlar os teus poderes ao ponto de dominá-los. O que aconteceu à pouco não foi culpa de ninguém. Ninguém te vai tirar as sobremesas - o pai sorriu. 
     Noah tirou o rosto dos braços da mãe, mais descansado e com um sorriso no rosto. 
- Isto quer dizer que sou como vocês? 
     O pai assentiu. 
- Então sou um super-herói? Vou combater o crime, acabar com os maus, como vocês?
- Calma aí, tigre - disse-lhe Troy. - Daqui a uns dez anos, talvez. 
- Isso é muito tempo! Eu quero ir agora - e levantou-se, ficando de pé em cima do sofá, numa pose valente. 
     Os pais riram-se, contentes por não haver nenhuma crise. 
- O Qaya e a Sil também têm poderes? 
     Troy assentiu. 
- O Qaya é a Terra, a Sil a Água. 
- Isso explica coisas - disse ele. 
     Todos se riram e durante o resto do dia, Noah não se calou em como ia mudar o mundo com o seu sidekick Ian. 


◄◊►



     Luna e Sol fizeram questão de frisar a importância de Noah não contar nada ao Qaya e à Silver sobre tudo isto. O pequeno resmungou, perguntando porquê várias vezes sem conseguir perceber os motivos dos pais uma única vez. Ele acabou por assentir ao pedido dos pais e não contou nada aos seus irmãos. 
     Mas Ian não estava vinculado a esse acordo. E esse foi o tornozelo de Aquiles dos pais. Se pensavam que Noah era o perigo, então não tinham realmente estado atentos ao filho mais novo. 
     Numa tarde de sábado, algum tempo depois da descoberta dos poderes, Luna e Sol viram no alpendre alguma água a escorrer. Ao abrirem a porta, os seus tornozelos estavam completamente encharcados e tiveram de afastar plantas do caminho, que não deviam estar ali, de folhas largas e grossas, para passar. Os dois viram a sua casa invadida por árvores e pequenos arbustos, uma nascente no lugar das escadas. Havia trepadeiras em todo o lado, heras pelas paredes e viram de relance uma borboleta voar. Algures cheirava a queimado e a fogueira e a única coisa compreensível naquela situação foi o pequeno Ian, com um olhar culpado mas com um sorriso inquebrável, escondido atrás de uma árvore. Ele fugiu pelo aglomerado de arbustos existentes e Luna nunca gritou o nome do menino tão alto na sua vida.

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