Underneath #17

     Primeiro, sentiu o chão duro e áspero. Depois, veio o cheiro a pedra molhada e fumo. Os seus olhos abriram-se lentamente, piscou-os várias vezes para focar a visão e viu-se deitado na gruta, mas esta não se apresentava igual à gruta que ele tão habituado estava. Ele não via nenhum vestígio de areia. Era só rocha. Levantou-se. Conseguia ouvir água a correr algures. Passou a mão pelas calças escuras e viu-se sem t-shirt. No interior do seu braço esquerdo tinha uma marca estranha tatuada. Uns metros mais à frente encontrou um vulto duma rapariga. Tinha o cabelo atado e vestia-se como se estivesse prestes a encontrar o fóssil mais procurado dos últimos séculos. 
- Quem és? - perguntou ela. A voz ameaçava-o, no entanto, ele só se sentia mais atraído a ela. 
- Calma, não pretendo fazer mal - respondeu. 
     Ela revistou-o com os olhos e posou-os na marca do seu braço. Ele sorria sem o conseguir evitar. Como se o seu corpo não fosse dele. Como se alguém o comandasse. Ela avançou para ele, com o olhar curioso. Tirou a mochila das costas e na palma da sua mão surgiu uma luz brilhante e quente. Ele surpreendeu-se com a familiaridade que aquela luz lhe trazia. Os olhos dela, castanhos avermelhados com um brilho azul, fitaram-no. 
- O que estás aqui a fazer? Vieste à procura do meu pai? 
- Sim e não. 
- Explica-te. Estás a seguir-me? 
- Se estiver, há algum problema? - O semblante dela ficou mais carregado. Como se bastasse respirar para a irritar. - Ajudas-me a sair daqui, Marte? 
     Ela virou-lhe as costas e colocou a mochila nas costas. Com a luz ainda a pairar na palma da mão, avançou em frente e disse: 
- O meu nome não é esse, Plutão - respondeu-lhe. - Vens ou preferes o escuro? - Virou-se para fitá-lo. 
     Ryan acordou antes de poder dar-lhe uma resposta. Os lençóis estavam molhados de suor e tinha o cabelo colado à testa. Relaxou as mãos que estavam em punho e sentou-se. Desta vez o sonho pareceu tão real que o fez questionar se estaria mesmo a viver na realidade. Encaminhou-se para a casa de banho, onde despiu as roupas e sentou-se no chão do chuveiro a levar com a água morna. Sentia-se tão cansado que podia adormecer ali mesmo. O cancro podia ter desaparecido mas os sintomas ainda estavam lá. Cansaço. Dores de cabeça. Medo constante. Ele não conseguia sair de casa sem ter medo de sofrer um episódio de alucinações no meio da rua. Onde estava o seu milagre? O que aconteceu para deixar de estar pleno e são?
     Alguém bateu à porta. A mãe, Blair. 
- Ryan? Está tudo bem? 
- Sim. - Levantou-se e desligou a água. Colocou uma toalha à volta das ancas e abriu-lhe a porta. 
- Ficaste lá dentro durante meia-hora. Passa-se algo? 
- Não. Estava só a relaxar, não te preocupes - pegou na cabeça dela com a mão e beijou-a. Ryan sorriu levemente. 
- Se precisares de descansar podes faltar hoje. Não te quero ver doente de novo. 
- Mãe, é quase verão. Não vou adoecer - acariciou-lhe o braço. - E o que estás a fazer em casa a estas horas? 
- É o meu dia de folga - Ryan aumentou os olhos em surpresa. - O que foi? - Um sorriso brotava nos lábios dela.
- Tu nunca tiras um dia de folga - observou ele.
     A mãe encolheu os ombros. 
- Culpa o teu pai - disse e dirigiu-se para o quarto. 
- E a que horas chegam? - perguntou, antes que a porta do quarto se fechasse. 
- Tarde. Mas não fiques na rua muito tempo, ouviste? - Ryan correu para ela e beijou-lhe a bochecha assim que se lembrou. 
- Diz ao pai que desejo-vos um bom aniversário de casamento. 
- Eu digo. Agora vai vestir-te antes que te constipes. 

     Trinta minutos mais tarde, Ryan estava a ligar a Troy. 
- Espero que não tenhas planos para hoje, Evans, porque os meus pais não vão estar em casa e isso, obrigatoriamente, significa que podemos fazer o que quisermos na minha pequena mansão. - Quando ele acabou de falar, não ouviu a imediata resposta que queria. - Troy? Estás aí? 
- Sim. Estou. Hum, não sei se vai dar. 
- Como assim "não sei se vai dar"? - Troy calara-se mais uma vez, deixando-o impaciente. - Troy? 
- Olha, fazemos assim, eu passo aí daqui a umas horas, está bem? 
- Tudo bem. Fico à espera - respondeu. 
- Até já - e desligou. 


◄◊► 



     Quanto mais escuro ficava, menos conseguia concentrar-se. Melody estava no mesmo sonho em que era perseguida numa rua por um monstro. Desta vez, no entanto, parecia que a criatura conseguia magoá-la tão profundamente que lhe deixava uma cicatriz para contar a história. As sombras já não pareciam tão inocentes como antes e os olhos tenebrosos eram capazes de retirar-lhe tudo o que tinha de bom. Assim que as garras da criatura tentavam possui-la, Violet conseguia despertá-la daquele pesadelo. 
- Adormeces-te outra vez? Tens a certeza de que estás bem? 
- Estou só cansada - murmurou. 
- Queres ficar a descansar? Posso ir ter com o Troy sozinha. Levo os teus apontamentos para ele ve...
- Não - interrompeu-a. - Dá-me um minuto. 
- Estou na sala se precisares de alguma coisa - Violet encostou a porta do quarto ao sair. 
     Melody levantou-se e ao despir o top reparou no fino espaço entre a porta e a ombreira. Estava estranhamente escuro para aquela hora da manhã e algo naquela escuridão a intrigava. Semicerrou os olhos, encarou bem aquele espaço e somente por uma fracção de segundo ela viu um fio negro ondular para fora da porta como um tentáculo. Dois olhos vermelhos rodopiaram no escuro e Melody correu para abrir a porta. Num movimento rápido, ela puxou a porta que se abriu e mostrou, apenas e só, o corredor vazio e calmo. A respiração dela ficou agitada. O seu coração batia rapidamente. Estaria a alucinar? Ela fechou a porta cuidadosamente e quando se voltou viu uma sombra erguer-se do chão. O monstro era tão negro que nenhuma luz se deixava transparecer. Dois olhos cor de chamas deram forma à sombra e fios pretos ondulavam pelo seu corpo. Tinha o mesmo sorriso sinistro que o reflexo oriundo do seu Planeta e Melody conseguia sentir que aquilo já não era um sonho. A sombra subiu e subiu, aumentando o seu corpo até ao tecto e inclinou-se para atacá-la. Melody agachou-se, colocou os braços na cabeça e ficou com um grito entalado no peito. A porta abriu-se de rompante e Violet entrou no quarto fazendo a criatura dissipar-se na presença dela. Melody levantou-se e olhou em redor. Não havia sinais de Escuridão. 
- Melody? O que se passa? 
- Hum? Nada - respondeu-lhe. Despiu o top e os calções rapidamente e colocou um vestido. - Emprestas-me o teu batom? 
- Claro... - Melody começou a aplicar o batom. Seguiu para a casa de banho e penteou-se. Violet viu que ela estava agitada - Está tudo bem? 
- Sim - disse sem a fitar. Ela atou o cabelo pelo cimo da cabeça. Pegou na mala e disse - Vamos? 
- Sim, vamos - respondeu-lhe a irmã.


◄◊►



- O que estás a fazer, génio? - resmungou Melody, com dois dedos na cana do nariz. 
- Estou a tentar! Eu não sei como fazer isto! 
- Vocês os dois. Parem com isso. Ele não vai chegar a lado nenhum assim - observou Violet. 
- Pois, está bem. Mas seria óptimo se ele conseguisse accionar os poderes ainda neste século. 
- Desculpa se não tive pais que me ensinaram a fazer o Wingardium Leviosa desde que nasci - refilou, Troy. 
- Já chega! O que se passa com vocês? Que mau humor, meu Deus. 
- A culpa é dela!
- A culpa é dele! 
- Pronto. Melody, por favor guarda os teus comentários senão ele não acciona os poderes nunca. Troy, olha para mim. Concentra-te. Fecha os olhos, se precisares. Respira fundo - disse-lhe. Ele assim o fez depois de lançar um olhar à Melody. Concentrou-se na voz da Violet a sussurrar-lhe as palavras... - Agora, procura a tua força, a tua ligação com o Tema. Procura a sensação que ele te traz quando recuperas as suas memórias. Lembra-te da mulher...
     Troy ouviu aquela última frase ser dita num sussurro e depois tudo ficou negro durante uma fracção de segundos. Sentiu uma energia súbita a percorrer cada veia do seu corpo mas foi uma sensação super breve. Ele abriu os olhos pronto para refilar outra vez mas viu o rosto da Violet com traços de azul. Ela sorria-lhe calorosamente e Troy olhou para as suas mãos. Elas detinham um brilho tão forte, poderoso e mágico que ele quase não acreditava.
- Consegui! - e a luz dissipou-se.
- Pronto, lá se foi a nossa sorte - disse Melody.
- Não a oiças. Se conseguiste desta vez, consegues outra - assegurou-lhe Violet.
- O que se passa contigo hoje?
- Nada. Agora treina, se faz favor - respondeu a Troy.
- Vamos lá. Concentra-te de novo - começou Violet.
     Parecia que as conversas deles eram sussurros. Melody desligou-se completamente e deixou-se ser invadida pelo acontecimento da manhã. Se os seus pesadelos começavam a ganhar forma, como seria capaz de fugir deles? Era suposto voltar ao seu Planeta e deixar ser-se atacada? O que teria ela de fazer? Uma dor de cabeça começava a formar-se. Estava tão cansada. Só queria dormir e esquecer o mundo durante vinte e quatro horas. Depois, e só depois, se dedicaria completamente a salvar toda a gente, inclusive a si própria. Mas não podia. Não era assim que funcionava e ela tinha medo de não conseguir salvar ninguém neste estado e pelo caminho perder-se completamente. Troy era o único que poderia percebê-la, mas ele já tinha o mundo nos seus ombros e aquelas olheiras não enganavam ninguém. Ela sabia o que ele sentia. Mas ele, e Violet, não podiam saber que era assim que ela se sentia. Nunca a deixariam em paz e era só mais um problema para a longa lista deles. Ela soltou um suspiro. Fitou a irmã e Troy - que conseguira formar gelo com as mãos - e sorriu ao vê-los sorrir. Eles fitaram-na e Troy gritou um "Andá cá!" para ela. Melody juntou-se aos dois. Ela perguntou-se como é que Troy se tinha infiltrado nas suas vidas de uma forma tão natural. O trio ficou perdido em magia e amizade, fazendo Melody esquecer por umas horas a caótica festa na sua cabeça.


◄◊►



     Com as horas a passarem, Ryan ficava cada vez mais chateado e impaciente. O que poderia estar Troy a fazer para não se encontrarem? Não tinham aulas. A Catarina a esta hora devia estar a acordar e ele sabia o horário em que ele ia para o bar ajudar os pais. Supondo que Troy não estava na escola, no bar ou na casa da Catarina, onde raio estaria ele? Sempre que Ryan tinha a casa só para ele, Troy era o primeiro a sugerir algo divertido para fazer. E depois Ryan convencia-o a fazer algo ainda pior e era por isso que as noites em casa sem os pais eram espectaculares, independentemente do que acabassem por fazer. Pelo menos era assim que ele se lembrava das noites de à seis anos atrás. A hipótese de ele estar com as gémeas, ou melhor, com a Melody, fazia-o querer partir algo. Portanto, para acalmar um pouco, ele pegou no telemóvel e na Marley e foi para o mar. Surfar iria acalmá-lo. 
     Ryan pegou nas chaves da carrinha "pão de forma" antiga do pai e colocou lá a sua prancha. Foi para a praia e ficou algum tempo a observar a água do carro. O mar estava calmo mas ainda se podiam aproveitar algumas ondas e antes que ele ficasse totalmente flat, Ryan vestiu o fato de surf e seguiu para a água. Ele apenas conseguiu apanhar umas seis ondas até ao mar ficar sereno. Foi para o chuveiro, onde tirou a parte de cima do fato e molhou-se com a água fria. Calçou os chinelos e foi para a carrinha onde vestiu a roupa normal. Pôs os óculos de sol e decidiu ver se Troy estava no bar. 
- Ryan! 
- Olá, Sr. E - disse antes de abraçá-lo. 
- Foste ao mar? 
- Fui. Mas não estava lá grande coisa. Sabe do Troy? 
- Não. Pensava que estava contigo mas se não está então tenta ir à Catarina - respondeu. 
- Pois, talvez mais logo. Agora acho que vou almoçar. 
- Fazes tu muito bem. O que vai ser? 
     
     Depois de almoçar, Ryan decidiu ir procurá-lo. A bicicleta dele não estava em lado nenhum. Seguiu por um dos caminhos que ele sabia que Troy tomava. Pensou que estava num labirinto de areia e vegetação, até que encontrou três bicicletas. Uma era do Troy e as outras duass, presumiu ele, que só podiam ser das gémeas. 
- Não acredito que ele me deixou pendurado por causa delas - murmurou a desviar um ramo da frente. 
     Ele seguiu para a frente e encontrou um pequeno campo de flores selvagens onde Troy e as gémeas estavam. Primeiramente, só os viu a sorrir e a rir e até aí tudo bem. Mas em seguida, Ryan não queria acreditar nos seus olhos: Troy emanava luz e gelo das suas mãos como magia. Fazia movimentos de onde saíam flocos de gelo, fios de neve e luzes. Ryan deu um passo atrás, a tentar rebobinar tudo o que vira para conseguir encarar a realidade. Aquilo podia muito bem ser uma alucinação. Ele já não sabia nada. Sentiu por momentos um abanão e, ao recuar, Ryan pisou num galho que o revelou. Melody foi a primeira a olhar para ele, seguido de Troy e só depois Violet que estava de costas para ele.
- Ryan - chamou o seu melhor amigo. 
- Diz-me que estou a ter a maior alucinação da minha vida - disse-lhe.
     Troy levantou-se e aproximou-se de Ryan. As gémeas ficaram de pé atrás dele. 
- O que viste? 
- Tudo! - Troy fitou as gémeas e voltou a por o olhar em Ryan. - O que acabei de ver? 
- Deixa-me explicar-te, por favor - pediu-lhe. 
     Então Ryan raciocinou. Aquele dia em que Troy lhe queria contar algo... Era isto. Ryan não estava a alucinar e ele não conseguia perceber se era feliz ou infelizmente. De qualquer das formas, a maneira como Troy o fitava era tão culpado e transparente que ele conseguia lê-lo perfeitamente. E independentemente de estar zangado por ele lhe ter mentido, nada podia comparar ao olhar sincero e pesado com que ele lhe fitava e então percebeu que se sentira assim uma vez. Quando lhe contou o porquê de ter desaparecido durante seis anos. Troy não ficara chateado. Ficara-lhe grato por ter contado. Apesar dos sentimentos contraditórios que sentia, Ryan aproximou-se do seu melhor amigo. 
-  Acho que estou a enlouquecer - soltou um riso seco. Colocou as mãos nos olhos e tirou-as antes de dizer - Conta-me. Não me escondas nada, Evans.
- Obrigado - disse-lhe Troy a sorrir. 

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