Underneath: Qaya #33

- Nós temos de ir. Violet vem pegar as tuas coisas - disse Melody a andar em passo acelerado pela fogueira a caminho do quarto.
- Melody, onde foste? Onde está o Ryan?
- Ele foi-se embora. Ele deixou-nos para trás - respondeu, a entrar no quarto furiosa.
     Todos à volta da fogueira trocaram olhares entre si. Axel e Violet seguiram-na até ao quarto. Melody estava de pé junto à sua cama a atirar roupas e o outro par de sapatos que Órion lhe dera para dento dum saco.
- Melody - exclamou Violet, completamente preocupada. Ela começou a tocar na perna dela.
- Violet, o que estás... - ela olhou para a perna. Tinha um corte longo pela canela. Fios de sangue rastejavam pela perna abaixo até ao pé esquerdo. - Nem reparei que fiz isso - passou a mão pela testa, num tom frio.
- Onde é que te meteste?
- Subi aquele monte de rochas à procura do Ryan - sentou pesadamente na cama. A irmã estava ajoelhada à frente dela. Axel continuava parado perto da porta, apenas a observar.
- Sozinha!? Melody, aquilo é perigosíssimo.
- Desculpa. Estava a agir sem pensar... Nem acredito que ele foi-se embora atrás dele.
- Tu viste, não foi? - Violet fitou a irmã. Ela não precisou de responder para ela saber a sua exacta resposta.
- Não interessa, Vi. Temos de ir atrás do Ryan. Podes curar-me?
- Sim.
- Disseste que ficavas - disse Axel.
     Melody apercebeu-se da presença dele naquele segundo.
- Eu sei, desculpa, mas temos de ir.
- Melody, porque não ficamos mais um pouco e tratamos da tua ferida normalmente?
- Não! Violet? - Melody tinha uma clara confusão pintada no rosto. - O Ryan está sozinho por aí, ele precisa de nós. O Troy ainda precisa de nós - argumentou. Ela levantou-se. A ferida fez-se sentir pela primeira vez e ela sentou-se de novo. - Violet, cura-me, por favor. Não posso ir a lado nenhum assim.
- Violet, porque não vais arranjar um balde com água?
- Está bem. Volto já.
     A irmã saiu do quarto.
- Axel eu sei que disse que ia ficar mas eu e a Vi temos de ter com o Ryan e com o Troy. Imagina que ele se cruza com pessoas que não devia tipo...
- Tipo eu?
- Não. Tipo outro monstro da Escuridão a fingir que é o seu melhor amigo.
     Axel colocou-se de cócoras. Pegou nas mãos da Melody. Ela agora conseguia olhar directamente nos seus olhos de prata sem ter de levantar o rosto.
- Eu sei o que vais fazer. Não vai resultar.
- Quero que fiques e sei que pedir não vai funcionar - disse ele, a colocar a mão direita no rosto dela. Melody corou. Axel percorreu cada canto do rosto dela com o olhar.  - Mas vou pedir-te na mesma - encarou-a. - Deixa-me levar-te a um sítio especial. Só te estou a pedir umas horas. - Melody apercebeu-se que ele ia retirar a mão da sua face e então deixou o rosto cair subtilmente na mão dele.
- Não posso - disse. Duas palavras quase inaudíveis. - Desculpa. 
- Tudo bem. Não faz mal - abanou a cabeça levemente e sorriu. - Deixa-me ir contigo. - Melody abriu a boca para falar mas ele não a deixou ciente que ela ia recusar. - É difícil andar na floresta, ele pode ter-se perdido. Eu conheço-a desde que consigo andar. Deixa-me ajudar, é o mínimo que posso fazer.
- Está bem - ela apertou as mãos dele.
     Melody deixou-se ficar uns momentos a fitar Axel, tentando guardar o brilho dos seus olhos na sua memória. Ela não conseguia compreender a possibilidade de nunca mais vê-lo, apesar de ser a realidade. A realidade que naquele momento era muito pior que má.
 - Violet, podes entrar - disse Melody com a voz alta. 
- Desculpa, mas não consegui evitar - pediu, ao entrar, com um sorriso tímido no rosto.
- Podes curar-me agora? 
- Está bem, teimosa. 
      Violet sentou-se na cama e colocou a canela ferida da irmã entre as suas pernas dobradas à chinês. Melody estremeceu ao mover a perna. A irmã moveu as mãos por cima do corte e uma camada azul e prateada de frescura surgiu debaixo das suas palmas. Violet movimentou essa camada pelo corte que se estendia na diagonal pela canela da irmã e uma sensação de alívio preencheu o rosto dela. A canela estava agora como nova. 
- Obrigada, Vi.  
- Vamos? - perguntou Axel. 
- Sim - responderam elas ao mesmo tempo. 


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- Tens a certeza que não queres ficar para almoçar? 
- Sim, não quero incomodar. 
- Não incomodas. Podias contar-nos o que aconteceu em Lymph enquanto comemos.
- Eu adoraria uma descrição detalhada da Silver - comentou Urano. 
- Anda comigo, eu mostro-te onde podes colocar a tua mala - disse-lhe Sol. 
     Catarina viu-se então presa pela família das gémeas sem conseguir encontrar uma porta de saída. Ela, no fundo, queria conhecê-los a todos e conhecer o mundo deles. No entanto, sentia também que não pertencia naquele mundo, naquele universo, que se mistura com o dela. Mesmo assim, ela ficou. 
     Ao dirigirem-se para o malheiro perto da entrada, pela armação de vidros de cada lado da porta e inclusive no vidro da mesma, uma luz azul ciano iluminou a entrada ofuscando o espaço de tal maneira que até na cozinha todos tiveram que fechar os olhos também. Sol, instantaneamente colocou o braço à volta de Catarina a tentar protegê-la. Ela manteve os olhos fechados por algum tempo. A luz ainda se mantinha forte na entrada. Sol, Urano e Mercúrio abriram os olhos após o choque apesar da sua presença ainda ser demasiado forte. Eles sabiam de quem se tratava. 
     A luz dissipou-se. 
- Está tudo bem, podes abrir os olhos - disse-lhe Sol. 
     Catarina abriu os olhos. O braço musculado e forte do pai das gémeas tapava o rosto dela de forma a que só os olhos e a testa se vissem. Ela percorreu a entrada e a cozinha com o olhar. Uma Luna preocupada vinha na direcção dela e do marido. Sol largou-a e Luna encaminhou-a até à cozinha. 
- Eu trato disto. 
- Eu faço questão de te acompanhar - adicionou Urano. 
      Assim que Sol pousou a mão na maçaneta, a porta abriu-se. Um homem alto apareceu. O seu corpo era forte e robusto, mas não gordo. Tinha uma barba de poucos dias loira a combinar com o cabelo da mesma cor que ia até ao queixo. O olho azul bebé brilhava como uma estrela e tinha vestido uma camisa clara com uma t-shirt azul escura por baixo. Vestia também calças de ganga escuras e botas. 
- Estás a ficar um pouco mal educado, Juju - comentou Urano, na sua voz com sabor britânico. - Além disso - esticou o dedo indicador para a roupa dele -, que trapos são esses?
      Juju? Júpiter? 
- Devia ter previsto que ias estar no ninho deles - respondeu o homem.
- O que queres? - perguntou, Sol, finalmente. 
- Ela - e apontou para Catarina.
     A sua respiração nunca tinha sumido daquela forma. Ela sentiu os braços de Luna rodearem-na com força. 
- A miúda está muito para lá dos limites - disse Sol, a colocar-se ligeiramente entre o Planeta, a esposa e a rapariga. 
- Então ela já vos colocou no lado dela e do Tema? 
- Ouve lá - começou Catarina, mas Luna parou-lhe o raciocínio. 
- Fica quieta, por favor - pediu Luna, de costas viradas para o marido agora. 
     Luna viu Mercúrio a levantar-se. Jade caminhou na direção dele. 
- Vieste numa má altura, Juju... 
- Muito pelo contrário - contradisse Luna, virando-se subitamente para eles. Catarina esgueirou-se ligeiramente para o lado dela, mas ainda estava protegida pelo seu corpo. - Íamos agora mesmo fazer o almoço. Nada que comida não resolva, certo? - e um sorriso charmoso floriu que até Catarina ficou encantada. 

      Minutos mais tarde, Mercúrio, Sol e Urano estavam no jardim a beber vinho enquanto que Catarina, Jade e Luna estava na cozinha a cortar vegetais. 
- Obrigada pela ajuda - Luna sorriu-lhe. 
- Eu é que agradeço. Mas o que estamos a fazer exactamente? 
- O almoço. Uma distracção. De certeza que ele está com os olhos postos em ti neste preciso momento. 
     Catarina deu uma olhada para a porta de acesso ao jardim. Júpiter estava encostado a uma das colunas que ficava mesmo no campo de visão dela. Os olhos azuis dele encontraram os seus olhos castanhos. Catarina ficou a olhar para ele durante uns segundos, e depois retornou a fitar as cenouras na tábua. Os acontecimentos anteriores ainda não tinham entrado na cabeça dela completamente. 
- Porque é que ele está atrás de mim? 
- Júpiter deve ter descoberto que és próxima do Troy. És a única que retornou desde a explosão de energia dele. 
- Isso foi há uma semana atrás... Aconteceu muita coisa entretanto. 
- Aqui passou apenas vinte e quatro horas, Catarina. Os acontecimentos aqui ainda estão frescos - relembrou-lhe Jade. 
- Sim, mas... 
- Moony, podes dar-nos alguns petiscos? - Urano entrou na cozinha, deixando a porta meio aberta. 
- Onde foste buscar esse nome?
- Não gostas? Fica-te especialmente bem. Combina com a marca que tens na nuca.
- Toma lá os teus petiscos - atirou-lhe um pacote de salgados. - Faz com que ele aproveite bem o vinho, entendido?
- Aye, Capitã - fez uma continência e saiu.
- Vão colocá-lo bêbado?
- Não. Vamos colocá-lo simpático. 


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- Mas que porcaria. 
     Troy estava a caminhar pelo túnel em quase plena escuridão. Estava todo molhado pois pelo tecto do túnel água pingava para o chão formando poças. Na mão direita uma luz azul intensa brilhava e com a mão esquerda ele seguia as paredes. Troy pensava que existia um túnel contínuo até à biblioteca até chegar ao primeiro beco. Teve de voltar atrás e escolher entre a direita e a esquerda. Ele escolheu a esquerda. 
      Ao caminhar pelo túnel, Troy foi-se apercebendo das pinturas e as várias pegas metálicas nas paredes. Aquela entrada para a Phjalk Libertyr parecia ter sido usado muito frequentemente visto que havia até local para colocar tochas. Por algum motivo decidiram fechar o túnel e mantê-lo em segredo. Talvez nem esteja em total segredo, visto que Órion sabia onde estava a sua entrada. Então por que é que selaram o túnel? 
     Troy ouviu um barulho. Um som animalesco a ondular pelas paredes. 
- Mas que óbvio - murmurou. 
      Virou-se e estendeu a mão para a escuridão. A luz azul iluminou dois olhos dourados. Troy susteve a respiração ao fitar o olhar do animal e começou a correr na direção contrária à dele. O escuro agora rodeava ambos mas Troy sabia que o animal estava muito seguro de si mesmo. Ele corria com toda a rapidez que conseguia mas pelo som que as patas da criatura soltavam ela estava a apanhá-lo não tardava nada. Com uma mão na parede, ou a roçar nela, ele corria o mais rápido que podia. A água debaixo dos seus pés não ajudava nada visto que começava a aumentar a pouco e pouco. Numa curva, Troy tropeçou. O animal soltou outro som como se estivesse a declarar vitória. A Estrela Vital iluminou o caminho com uma mão e viu um beco sem saída à sua frente. Ele parou, ofegante e molhado. Apagou a luz e deixou de respirar. Talvez ele tivesse sorte e o animal ignorá-lo-ia. Só que não. A criatura começou a andar na direção dele e chegou tão perto que Troy sentiu o seu bafo no seu rosto. 
     Com cuidado, Troy Evans fez uma estalactite de gelo que deslizou pela sua mão. Abriu a boca para respirar e com um grito impulsionou um ataque ao animal com a arma de gelo. O animal recuou ao mesmo tempo que rugia, evitando o ataque da Estrela. Troy afastou-se, ficando quase colado à parede do beco. Abriu a mão esquerda e fez uma luz azul que flutuou até ao tecto do túnel, iluminando por completo tudo à volta. Ele viu então o que enfrentava. 
     Parecia um cão, mas era claramente muito maior. A sua cabeça ficava à altura da dele. O seu pêlo grosso era maioritariamente castanho escuro sendo que à volta do pescoço e no peito tinha uma forte camada de pêlo claro. As suas orelhas eram demasiado longas fazendo lembrar as orelhas dum coelho. No focinho longo, tinha uma risca clara que ia até à cabeça. As patas brancas eram grandes e as suas garras estavam agora de fora, como os dentes mortíferos. Baba caia da boca dele. Sons saíam da sua boca. Um movimento e ele atacava. Na mão direita surgiu outra estalactite de gelo. Troy não estava preparado mas naquele momento não havia tempo para se preparar. O animal atacou. 
     Troy levantou os braços e colocou as armas de gelo no ar. O animal avançou com a boca aberta e os dentes afiados. Com um impulso, ele saltou no ar e foi para o outro lado do beco. A criatura virou-se, furiosa e a rosnar, e correu para ele. Troy atirou as estalactites no ar que acertaram o animal e depois uma intensa luz das suas mãos surgiu. A criatura caiu em cima dele, como se nada o tivesse atingido e prendeu os pulsos de Troy no chão. Ele estava agora frente a frente com os caninos afiados e alguma baba caiu em cima do rosto dele ou na roupa. O animal aproximou o nariz e cheirou-o. Troy virou o rosto. O bafo era insuportável. O animal rosnou, cheirou-o mais uma vez, agora com o nariz húmido a tocar na pele dele e sentou-se em cima dele com a língua de fora e os olhos subitamente gigantes. Lambeu Troy no rosto e latiu. Continuava com a grande língua de fora e a enorme cauda balançava de um lado para o outro. Troy demorou uns momentos a perceber. 
- Conhecias o Tema, han? Felizmente - disse, com alívio na voz. Ele tentou respirar fundo mas a criatura continuava em cima dele. - Sai. Cão, sai - e o animal saiu. 
     O animal ajudou-o a levantar-se. Troy deu-lhe umas festinhas. 
     Dois segundos depois, ele caiu no chão. Troy viu as estalactites atravessadas na barriga dele. O animal começou a gemer baixinho. 
- Não me faças isto agora - os olhos do animal aumentaram. - Vou tirar-te isso daí, está bem? 
     Troy baixou-se e com cuidado tirou as estalactites que derreteram. Finos fios de sangue escorreram pela barriga do animal mas a ferida sarou num instante. 
- Oh - Troy respirou fundo de alívio e sorriu bastante. - Olhem só para este - ele deu festinhas no animal que começou a lambê-lo. - De nada. Mas podes parar com isso? Vou ficar a cheirar a cão. 


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     Os seus pés tropeçavam nas pedras e nos galhos caídos. Os troncos grossos das árvores apoiavam o seu corpo mole e ferido. A sua sede matava-o. Enquanto caminhava na floresta, os seus pensamentos rodopiavam à frente dos seus olhos e falavam. Palavras altas e outras num murmúrio mas Ryan ouvia-as da mesma forma. O seu corpo pintado de poeira, terra e suor movimentava-se com lentidão por entre os ramos, as flores e os arbustos. Ele precisava de parar mas não queria nem podia. Ele tinha de encontrá-lo... Onde quer que ele estivesse, Ryan tinha de... 

     O dia estava a começar a ceder à noite. Melody, Axel e Violet estavam na floresta a procurar por Ryan. Nenhum dos três compreendia onde é que ele estava. Pelo que Axel disse, ele não pode ter saído da floresta sem saber o exacto trajeto de volta para a vila. Portanto, os três não conseguiam evitar os piores pensamentos. O trio estava a ficar exausto e as frutas que tinham comido não matavam a fome que começava a crescer. 
- Onde é que ele pode estar?! - disse Melody, frustrada. 
     Axel praguejou num murmúrio. 
- Aquele é o Ryan? 
     Melody girou o rosto para onde Axel estava a olhar. Envolto em terra, completamente abrigado em folhas verdes enormes estava o corpo de Ryan. 
- Ryan - suspirou Melody.
     Ela correu para ele, com Axel e Violet atrás. Tirou-lhe a terra da roupa, moveu as folhas verdes e o corpo dele. O rosto branco dele estava agora castanho e sujo por causa da terra. Ela limpou-lhe o rosto suavemente e chamou por ele. Abanou o seu corpo e chamou por ele. Ryan não acordava. Ela levou o ouvido ao coração dele e verificou que batia. 
- Vi - chamou Melody, preocupada. 
- Deixa-me vê-lo - Violet ajoelhou-se perto dele. Ryan tinha várias picadas no pescoço e um corte um pouco profundo na parte de trás da perna. - O que é que ele andou a fazer? 
- Eu carrego-o de volta para o acampamento. 
     Nesse instante, Ryan abriu os olhos. 
- Ryan? 
- Melody? Onde está o Troy? 
- Ele... 
- Eu estava tão perto... O nevoeiro - murmurou, interrompendo-a. 
- Ryan - chamou Melody. Ela aproximou-se dele de novo. Ryan estava a fechar os olhos. - Não adormeças! - Agarrou na camisola dele com força. - Não adormeças! - Mas era tarde demais.

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