Underneath: Qaya #27

     As gémeas misturaram-se com a multidão e sem conseguir ver a cor do vestido de cada uma, Troy não sabia a direcção que elas tinham tomado separadamente.
     Ele caminhava por entre a multidão de pessoas que passeava pelas ruas, vestidas com vestidos, saias compridas ou calças muito justas com camisolas fluídas, com Catarina apoiada nele e Ryan mesmo atrás. Cada pessoa segurava uma vela, grande ou pequena, com a chama a arder. As ruas estavam iluminadas não só pelas tochas cautelosamente distribuídas nas paredes, como pelas velas que cada pessoa segurava num pequeno prato decorado. Qaya estava cheio de surpresas e mistérios e um deles era esta animação. Troy conseguia ouvir a música a vir duma praça muito perto deles e conseguia cheirar algo a ser preparado numa espécie de churrasco. Ouvia vozes a cantarolarem e crianças a rir. Troy olhava em redor e apesar de não perceber uma palavra proferida, ele sabia que significava algo de bom e isso fazia diminuir o medo que sentia a nascer dentro dele. As sombras dançavam nas paredes e ele sabia que nada ia acabar bem naquela noite. 
     Catarina gemeu. 
- Queres parar? 
- Não. Não podemos. 
     Por muito que lhe custasse ver Catarina daquela maneira, ela tinha razão, eles tinham de continuar. Violet e Melody tinham-na ajudado com a ferida e envolveram-na com tecido que Troy trouxera a mais da loja que ele assaltou. Só que ele sabia que não estava a resultar e se não arranjassem ajuda, tudo iria começar a desabar. 
- Evans - ouviu Ryan chamar. - Evans! 
- Ryan - virou-se para trás com cuidado. 
     O seu melhor amigo furou na multidão. 
- Acho que vi o Saeva. Foi só um momento, um piscar de olhos, mas juro que o vi - disse, ofegante. 
- Para onde vamos? Para a praça? 
- Não sei. Não sei se ele te avistou. Se sairmos daqui podemos estar a correr para uma armadilha e se não sairmos podemos correr perigo - eles começaram a andar de novo. 
- Então o que fazemos? - perguntou Catarina, com a sua cara cada vez mais pálida. 
- Nós temos de encontrar as gémeas. 
- E se o monstro da Melody voltar? 
- Não vamos deixá-la sozinha - replicou Ryan. 
- Claro que não - assegurou-lhe o melhor amigo. - Temos de encontrá-las. 


◄◊► 



     A noite repousava em Crystal Waters e Mercúrio estava plenamente acordado com a cabeça de Luna deitada ao seu lado. Até há uns dois minutos ela estava acordada com ele, mas agora Mercúrio não tinha tanta certeza. Ainda tinha muitas dores. Terra não o podia - nem o faria - curar completamente visto que ultrapassar a orla duma galáxia deixava danos que só naturalmente o corpo consegue recuperar. Ele já não tinha as feridas mínimas no corpo, como arranhões e alguns hematomas, mas ainda sentia o corte que o massacrava no peito. Enquanto o dia passava, Mercúrio compreendeu a estupidez que tinha feito. No que estaria ele a pensar? Tentar ultrapassar a barreira entre as galáxias e sair vivo? Ele passou a palma da mão na cara enquanto a abanava. Se a Mel estivesse ali... 
- Luna? - sussurrou. Não ouviu resposta. - Lunática - chamou, num tom de voz mais normal. Não ouviu resposta. - Apetece-me desabafar. Ainda bem que estás a dormir. Assim não me interrompes - ele olhou para ela. Luna estava de costas para ele e sem ouvir um som vindo dela, ele concluiu que ela dormia. - Sabes que não falo da Mel sem me pedirem. Não sei bem porquê. Ela foi uma parte tão importante da minha vida - disse, a ter flashes de momentos com a Mel enquanto falava. - Se ela estivesse aqui iria dar-me um sermão que eu até ia de lado - sorriu, a imaginar o cenário. - Já te contei, mas ela não tinha aquele cabelo todo estranho e colorido quando era miúda. Ganhou a estupidez do pai, disso te garanto. - Luna mexeu-se no seu lugar. Mercúrio ficou calado por uns segundos. - Luna? - Não ouviu resposta. - O cabelo dela era quase loiro como o da Mondy - retomou, - mas ganhou um pouco da minha cor e ficou com um longo cabelo loiro cor-de-areia. Ela perdeu o tom de pele claro tão rapidamente, não deixava ninguém dizer-lhe para se tapar do Sol. Se não tivesse morrido, aposto que tinha ido viajar contigo ao colo pelo mundo inteiro e feito dezenas de exposições fotográficas. - Fez uma pausa a tentar engolir o futuro que a sua filha nunca teve. - Quem me dera que ela estivesse aqui para me dar o maior sermão da história. Quem me dera, mesmo. 
     Mercúrio suspirou. Ele ainda se lembrava de ensinar a Mel a andar e só o facto de já não ouvir a voz dela à mais de 20 anos partia-lhe completamente o coração. Como é que era justo ele ainda estar vivo, depois de tudo o que fez, e ela não? Ela, que só compaixão, diversão e sorrisos lhe trouxe, está tão longe do alcance dele. Ele morria sem pensar duas vezes para estar com ela e com a Mondy. Mas só a ideia de deixar as gémeas era absurda e completamente ridícula. Ele nunca as deixaria. Apesar de elas não serem a sua filha e Irmã, elas eram a sua oportunidade de se redimir. E Mercúrio amava-as incondicionalmente. Elas eram, afinal de contas, as suas bisnetas, mesmo que ele odiasse o facto de já ser velho o suficiente para lhe chamarem de bisavô. 
     Luna virou-se para ele, de olhos fechados, e pousou o braço à volta dele. Mercúrio ficou a fitá-la por uns instantes. Luna nada tinha a ver com a sua mãe fisicamente, eram completamente o oposto, apesar da cor que ela começara a ganhar desde que se mudara para perto da praia. No entanto, mais ninguém lhe dava a sensação de que a sua filha estava ali, ao seu lado, que a Luna. Elas partilhavam o mesmo sorriso e compaixão e se ele apenas a visse de costas num dia solarento, Mercúrio juraria que Mel estava à sua frente. Ele sorriu. Beijou a testa da sua neta e pegou-lhe na mão. Minutos depois, eles os dois estavam a partilhar um sono que durou a noite toda. 
     

◄◊► 



     Ao chegar na praça, o trio começou desesperadamente à procura das gémeas. Catarina e Troy tomaram uma direcção enquanto que Ryan foi à procura noutra. Sozinho, ele percorreu uma rua solitária, com as tochas de fogo tão intenso que Ryan sentiu-se estar preso numa fogueira. Até então, ele não tinha visto nenhuma sombra a não ser a sua e quando uma silhueta negra como o petróleo surgiu, soube logo de quem se tratava. 
     Ryan começou a correr. Melody precisava da sua ajuda e ele tinha de ir ao seu socorro. Virou uma esquina e deu de caras com um nevoeiro frio e completamente impossível naquele ambiente quente. Ele sentia o suor a aquecer e a esfriar-lhe a pele. O fogo das tochas brilhava intensamente, como se não houvesse maneira de apagá-los. Magia, pensou ele. Ele sabia que não ia conseguir ajudar a Melody sendo humano, mas ia fazer os possíveis para afastar aquela criatura dela. Sentia um cheiro a fumo a queimar-lhe os pulmões. O ar estava contaminado e o chão parecia ficar cada vez mais íngreme. Ryan começou a correr pela rua áspera e viu uma mancha escura mexer-se nas paredes e a formar-se. 
- Melody - Ryan chamou. - Melody! 
     Ela não lhe respondia. Sentia os músculos a ficarem tensos mas continuou a correr contra o ângulo daquela rua. - Melody - chamava. Ryan começou a trepar a rua. O suor escorria-lhe pelo cabelo. O fogo quente deixava-o tonto e o nevoeiro confundia-lhe as direcções. Não sabia por onde ir mas sabia onde tinha de chegar: onde Melody estivesse. Ele deu um impulso e começou a correr outra vez, contra todas as possibilidades. - Melody - gritou outra vez tão alto que o deixou esgotado. Desta vez ele recebeu uma resposta. 
- Ryan - ouviu Melody dizer. 
     A voz dela estava tão perto, como se ela estivesse mesmo ao seu lado. Ele tirou uma das tochas da parede e surpreendeu-se com a leveza delas. Continuou a correr, ofegante e cansado, e continuou a correr. Ele não via Melody em lado nenhum. 
- Ryan! Onde estás? Ryan - ouvia Melody dizer.
- Melody! Não te vejo... Não te vejo. 
     Ryan parou por uns instantes. Pensa, Bennett, pensa. 
     O nevoeiro. Só podia ser o nevoeiro. 
     O nevoeiro ocultava-a. Ele tinha de afastar o nevoeiro. Mas como? 
- Melody, usa os teus poderes! 
- Ryan... RY... - ouviu-a gritar o seu nome e depois seguiu-se um suspiro torturante, como se a estivessem a estrangular. 
- Melody! - ele rodopiou no seu lugar à procura dela, com a tocha na mão a fazer círculos de fogo no ar. - Melody, onde estás?! - gritava, desesperado. Sentia as mãos a tremer, as pernas, os braços. Melody não podia morrer... Ele tinha de tentar alguma coisa. Algo. Qualquer coisa. 
     À beira dum ataque de pânico, Ryan Bennett viu uma sombra surgir, com a velocidade dum relâmpago. Ele despertou do transe e voltou a correr. Não iria sair dali sem encontrá-la. Com cada passo que dava sentia-se mais irado e corajoso ao mesmo tempo. Naquele momento, não via o que poderia perder. Se não tentasse, qual era o objectivo de estar ali? Ele largou a tocha, sem querer saber de nada, e percorreu todas as direções com os olhos a cada segundo que passava. Onde é que estás, Melody? Ryan fechou as mãos em punhos e com a determinação a conduzi-lo, ele viu o nevoeiro agitar-se até desaparecer completamente, como se Ryan o tivesse sugado. Rapidamente desligou-se do que tinha acontecido quando viu Melody no final da rua, num beco, entre a parede e o seu monstro. Ryan parou por segundos. Ele tinha-a encontrado. Ele tinha conseguido. 
- Ryan - ele viu os lábios dela moldarem o seu nome. O rosto dela estava completamente pintado de medo e alguma esperança.
     Pegou numa das tochas e foi até ao monstro. 
- Olá, mate - A criatura virou-se. - Está uma noite linda. Um pouco quente para o meu gosto - e acertou na cabeça do monstro com a tocha, como se fosse um taco de basebol -, não achas? - Ryan largou a tocha em cima da mancha negra. 
     A criatura cambaleou para o lado e as chamas começaram a consumi-lo, dando a chance de Melody levantar-se. Ryan estendeu-lhe a mão. 
- Anda, vamos - disse, com pressa e alívio por ela estar inteira. 
- Foi como no meu sonho - murmurou ela, tão baixinho que ele baixou-se para ouvi-la. - Eu sonhei que isto ia acontecer-me. 
- Está tudo bem agora - ela fitou-o e deu-lhe a mão. - Vamos, Melody. 
     Melody mal conseguia andar com o tormento que passara. Ryan tinha-a debaixo do braço e olhava para ela, enquanto eles corriam para a praça, para ter a certeza de que ela não se tinha ido abaixo. 
      

◄◊► 



     Troy e Catarina estavam sentados num banco da praça perto da zona onde comida era servida quando Ryan apareceu com uma das gémeas. Catarina só sabia que era a Melody pelo vestido vermelho que agora tinha alguns rasgões na borda. 
- O que aconteceu? 
- O monstro dela - respondeu Ryan. - Precisamos de encontrar a Violet. 
- Tudo bem, mas por onde começamos? Claramente, não nos podemos separar - comentou Catarina. A voz soou-lhe muito rouca e fraca para o seu próprio gosto. 
- Não sei. Melody? - perguntou Troy. 
     Melody estava completamente deslocada dali e olhava para o chão fixamente. 
- Melody - chamou Ryan, num gesto muito íntimo. Ela levantou o rosto e limpou uma lágrima que tinha caído sem o consentimento dela. 
     Troy viu o rosto dela pálido e ele soube que tinha de deixá-la ir resolver o problema. Nenhum deles queria voltá-la a ver assim: desolada, em choque e completamente apavorada. 
- Desculpem - disse, com a voz muito mais composta do que Troy esperava. - A Vi foi pela esquerda. Não sei que rua ela tomou. 
- Tudo bem, vamos. Consegues caminhar? 
    Catarina assentiu, eles atravessaram a praça e entraram numa das ruas à esquerda. O caminho foi dar-lhes a uma zona deserta, um pátio aberto com bancos rectangulares em pedra castanha. A luz que iluminava o pátio provinha das tochas que estavam penduradas em certos lugares das paredes. Troy e os restantes estavam a morrer com o calor que o fogo emanava. 
- Ela não está aqui. 
- Jura, génio? - disse-lhe Melody, com o sarcasmo renovado. 
- Eu estou aqui - disse uma voz. - Não vos chega? 
    Uma sombra saiu da parede e formou-se num homem. Troy nem precisava de olhar duas vezes. Era Saeva. 
- Que saudades, pequeno Alexander - disse ele, chegando-se perto do grupo. Troy afastou-se dele e colocou Catarina atrás de si, subtilmente. 
     Saeva sorriu. Tinha os dentes como os de tubarões, como se fossem todos caninos. O olho esquerdo era totalmente negro enquanto que o outro se encontrava totalmente branco com a falta de luz. Nunca o tinha visto em forma humana. Saeva era um homem de estrutura dita normal, com o cabelo tão negro como o breu e este estava arranjado em gel. Tinha o nariz direito e demasiado comprido para o rosto que tinha um tom doente e pálido. Parecia ter saído da Era Vitoriana de Inglaterra a maneira como ele se vestia. 
- Gostava muito de saber se a tua posição se mantém. Estou um pouco aborrecido - admitiu, num tom dramático. - Ver-te saltar de Planeta em Planeta e agora em busca da Biblioteca do Saber é, de facto, tão aborrecido. Estás a ter este trabalho todo que no final de nada vai compensar. Quero dizer, gostava de te poupar esse trabalho. Podias vir e comigo e... 
- Não. Eu não vou a lado nenhum contigo - interrompeu-o Troy, farto de ouvir a voz dele. 
- Não me mintas, Alexander. -  Um silêncio pairou no ar. Saeva percorreu o grupo com o olhar. - Catarina - disse, com um sotaque. Ele abriu os lábios num sorriso. - Estás um pouco pálida - ele aproximou-se e tentou chegar-se perto dela. Troy colocou-se entre ele e a rapariga. 
- Não te atrevas - Troy ameaçou, com os dentes cerrados. 
- Atingi um nervo? - ele riu-se. 
     Troy queria-o fora dali. Estava farto. 
     Ele empurrou-o e ao mesmo tempo que as palmas das suas mãos tocaram no peito dele, uma rajada de vento saiu-lhe das mãos e Saeva foi projectado para a frente. Ele caiu como um gato no chão, ágil e elegantemente. Tinha um sorriso no rosto. O grupo afastou-se deles os dois. Ele ouvia o grupo falar com ele mas a sua concentração estava noutro lado. Saeva começou a correr em direção a Troy e enquanto corria a sua forma original ia-se revelando. As pernas deram lugar a uma sombra, e a seguir os braços e por fim a sua cabeça tornou-se opaca e negra como um fantasma. Os dois olhos agora tinham uma cor acinzentada e o sorriso era gigante. 
    Troy não esperou que eles os dois se encontrassem frente a frente. Colocou as mãos ao nível dos olhos e congelou a figura do Saeva deixando-o imóvel com apenas a sua sombra no chão a mexer-se por baixo do gelo. Em seguida, ele chamou o seu elemento e levantou-o no ar e atirou-o contra uma parede. Uma tocha caiu e começou a alastrar as chamas pelo fantasma. Saeva olhou para ele e em seguida para o lado. Antes de desaparecer, sorriu de fininho e num piscar de olhos, as chamas e o gelo tinham desaparecido juntamente com o que aprisionavam. 
     Catarina abraçou-se a Troy, quase a chorar. Ryan tinha uma expressão tão preocupada e Melody parecia aliviada que tudo tinha acabado por aquela noite. Só tinham de encontrar a Violet. 
- Temos de encon...
- Acredito que é isto que procuras - disse uma voz grossa. 
     Troy virou-se e fitou as sombras. De lá, saiu um homem alto com uns olhos ferozes e de pele morena. Ele tinha um sorriso no rosto e ao sair do escuro, mostrou Violet aprisionada nos seus braços, com a boca atada e as mãos aprisionadas em metal. O homem tinha uma adaga muito perto da garganta dela e Troy lutou ao máximo para não agir estupidamente. Catarina apertava-lhe o braço como se estivesse prestes a desmaiar. Ele nem se atreveu a olhar para a Melody para não agir por impulso. Violet lutava para se manter afastada da faca e tinha um olhar desesperado, com o cabelo a cair-lhe no rosto. Ela murmurava algo mas com a boca atada, nada se percebia. 
- Finalmente encontrei-te, Tema. E não me vais escapar como da última vez - disse o homem. 

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